No calor do momento (sobre o rap)

(Texto do grande Vinícius Xavier, escrito assim, de improviso.)

O Rap é uma sequência de um processo histórico de contestação de uma realidade social específica que traz à tona os espólios e resquícios da escravidão nas Américas. Esse processo se inicia, no mínimo, com a guinada da música deixando os círculos burgueses e pequeno-burgueses no final do século XIX, quando surge algo para além do “espírito europeu” da música erudita e de uma gama de música popular feita por brancos e para brancos. Como disse, não se trata, como querem os ressentidos, de uma simples cor de pele, mas, antes, de um conjunto de pensamentos e práticas sócio-históricas que divide o mundo entre o “nós” e o “resto”. Surge o Blues e o Jazz como música afastada, nos guetos (e é o que leva, entre outras coisas, Adorno a dizer que o jazz era composto por “lumpenproletariado”). Mas a simples expressão de negros fazendo música já ia para além do quadro reinante. Não como simples contestação do racismo como problema histórico, mesmo que isso vinha no bojo de um movimento nascente; além, de uma negação do dado e do estabelecido (e é esse o elemento que, em meu entendimento, o Adorno não tem em mãos). Por mais que depois, assim como tudo, e principalmente com o nascimento e ascensão do Rock o Jazz e o Blues tenham perdido força, a expressão da negação é e foi um germe que se desenvolveu conforme o movimento da sociedade. É claro que depois grande parte é engolida pela Indústria Cultural etc.. O Funk surge como a sequência disso: por mais tenha sido algo mais “mainstream”, naquele momento se expunha como a negação por ser um elemento da resistência cultural do pretos, que, não obstante, eram impedidos de vivenciar a cultura dominante. Com os movimentos da década de 1960, tanto os políticos, quanto os político-culturais – isso nos EUA – se inicia, em meu entendimento, o rap propriamente dito. Esteticamente, o rap deve ao Funk e ao Jazz. Politicamente, além desses, ao Blues. E o grande iniciador do que viria a ser o Rap no final da década de 80 e início da seguinte, é Gil Scott Heron, com suas letras extremamente politizadas, nas décadas de 60 e 70. Isso influencia todo o mundo negro. O Funk e o Jazz e, especialmente, esse Funk ligado aos movimentos radicais negros nos EUA, influenciam tanto os Africanos, quantos os Latino-americanos, em especial, Brasil.
Aqui entre nós, é o Samba de Morro e o Partido Alto que cria toda a imagem concreta da desigualdade, não simplesmente denunciando a desigualdade, mas “dando a cara a tapa”: “marginais” fazendo músicas para “marginais” e, com isso, construindo todo um legado de auto-afirmação negativa. Além disso, com os “Bailes Blacks” em 60 e 70, criaram, em SP especialmente, todo um enraizamento auto-afirmativo daquilo que, segundo o “colonizador”, deveria ter sido eliminado na Guerra do Paraguai e com a eugenia ultra-violenta: por isso o “negativo”: a própria existência de “marginais” é uma negação, não do racismo, mas do capitalismo enquanto sistema “europeu”. Nesses Bailes, aqui em SP, no final dos anos 70 e início dos 80 – Bailes que representavam alguma resistência pois, entre outras coisas, era local onde pretos se sentiam “em casa”, para não dizer que não éramos aceitos nos círculos musicais brancos -, enfim, nesses bailes, nessa época, surge o “tagarela” (e isso os mais velhos dizem, além dos pesquisadores sobre o assunto): num dado momento, o baile parava para alguns “cantarem-falando” em cima das bases de Funk. Isso antes do surgimento “oficial”, no metrô São Bento. Na década de noventa, com a “abertura democrática” e o Brasil falido, as desigualdades sociais vinham à tona com toda força. Os resquícios de ditadura expresso na ROTA e os bairros periféricos “escuros” e esquecidos pelas “políticas públicas”, criou todo o cenário na qual o Rap se ergueria com força contestatória e negativa. (Basta ouvir qualquer coisa da década de 90, por pior que seja).
O que quis dizer até agora, na tentativa de concluir essa parte, é que é um movimento, não-linear, de negação e, por isso, ficou restrito aos âmbitos negativos: os pretos e a periferia.
Mas, como sabemos, a partir do novo milênio, se efetiva com toda força o que Adorno e Horkheimer haviam dito na década de 40 (ou 50): o fetichismo da Indústria Cultural – e a consequente naturalização do estabelecido, e a reificação etc.. Isso tudo aliado ao “way of life” tupiniquim que, entre outras coisas, se estabiliza com o aumento do “poder de consumo” do indivíduo-coisa. Os problemas sociais, que afetam a periferia não sumiram; antes, tomaram uma dimensão mais sutil (é mais ou menos o que o Marcuse diz no Homem Unidimensional). E isso fez parecer que tudo estava resolvido. O Rap deveria evoluir junto à contradição do capitalismo, de forma negativa. Em meu ver, o único que consegue esse feito é o Parteum (e o Mzuri Sana, por consequência).
O que ocorre com esse “pop-rap” dos meninos da Augusta é que, entre outras coisas, o indivíduo agora é a imagem cômica e reificada do indivíduo do século XVI e XVII: aquele indivíduo autônomo que poderia suprir todas as suas necessidades através de sua própria Razão (é o que leva Kant a pensar no indivíduo atomizado racional e autônomo. Mas, antes, o que ocorre hoje é mais uma perspectiva kierkegaardiana do indivíduo mônada que se salva pela fé – mas não a cristã, em Deus, como queria Kierkegaard, mas na fé reificada no Capital fetiche, no consumo e no sobressair individual – como heróis mesmo, que “venceram na vida”). E isso leva ao “Rap do Eu”: Kamau é o grande representante. Veja “Eu fiz isso, conquistei aquilo, fui por aqui, vim, venci” etc.. Ou, seus pupilos… O Criolo é um caso à parte. Ele de fato parece que pensa. Mas, para “vencer”, vendeu-se: veja os clipes e as letras (até aquela “não existe amor em SP” é de uma ambiguidade que me confunde). O Ferrez é outro enigma pra mim. Não sei se é um proletário intelectualizado e que se tornou pequeno-burguês, ou se é um intelectual pequeno-burguês com vestes de periferia. Sei lá!

Mas, o que digo, e isso começa com XIS na “Casa dos Artistas”, seguido de Helião no “Faustão”, os caras (não lembro o nome) que cantavam “… o boy de Cheroke” e aparecem de… Cheroke!!!, o Mano Brown fazendo show em Balada de Boy, 200 contos pra entrar…etc..
O que vale, em suma e grosso modo, é o vencer na vida, o indivíduo atomizado tentando se sobressair como se fosse o “radical” – e isso não é específico do rap (ou do pop-rap). Os problemas “sumiram”, e o rap – assim como os movs. de Esquerda etc. – perderam o rumo, o “concreto” que negavam. Não porque o concreto esvaneceu; antes, por que se sutilizou e se abstraiu: não se vê mais com os olhos nus. O grande problema é esse cinismo que diz ‘sou periferia, contra isso, contra aquilo’, que serve simplesmente para aparecer (assim como a Xuxa namorar com o Pelé como trampolim pra fama).
O Rap, reafirmo, se perdeu pois se tornou pequeno-burguês, se alienou das bases. E seus fantoches se tornaram aspirantes à famosos, na tentativa de copiar os gringos do mainstream…

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